Fait divers de toda a ordem.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

“Uma vida de vidro”

Desde que extraíram a suave areia daquela linda praia nas Caraíbas que o meu fado estava escrito: ser um dos copos de vidro mais bonitos do mundo, capaz de fazer corar de vergonha o mais puro cristal da Bohémia.

Enfrentei os fornos do inferno como um homem, passei da fase do punhado de minúsculos grãos de alva areia ao estado líquido viscoso de vidro escaldante com distinção, fui tocado, mexido e revolvido por mãos fortes e experientes. Humm, imagino o que estão a pensar: vidro artesanal é coisa retrógrada sem lugar num mundo virado ao máximo e mais imediato lucro, em preterição do valor artístico que só mãos humanas podem acrescentar ao fazerem todas as suas peças únicas.

Sim, fui uma peça única, em tudo semelhante aos meus irmãos que comigo faziam o serviço de copos, mas só pelo facto de ter sido esculpido à mão recebemos todos uma alma única e intransmissível.

Após anos numa das mais distintas famílias, a servir as necessidades e desejos dos seus finos criados, eis que chega o meu grande dia: servir um dos membros da família. Mas como nem tudo o que é bom dura p’ra sempre, era a maçã podre, o desvairado, o cabeça de vento, o idiota, certamente produto de anos de consanguinidade entre famílias ricas, que veio beber leite ainda morno vindo da teta da vaca.

Depois de se servir da forma que bem entendeu, atirou-me contra a pia de mármore da opulenta cozinha e falhou-me. Partir-me de vez seria um fim ideal, sem sofrimento, quase como aqueles que morrem pacificamente no sono. Pelo contrário, ao embater contra a pedra fria, criou um falha no meu corpo, ficando para sempre defeituoso. Assim fui relegado para as traseiras do armário e para sempre vi todos os meus irmãos a serem usados, lavados e arrumados, enquanto eu ali, quando não era ignorado, era olhado com desdém e pena: demasiado feio para voltar a ser usado, pouco estragado para ser mandado para o lixo.

[O meu exercício 1, “Uma vida de vidro”- Ponto de Vista do Curso de Escrita Criativa:
SENA-LINO, Pedro - Curso de Escrita Criativa I, Criative-se: usar em caso de escrita - Porto Editora, 2008]

1 comentário:

Rubia disse...

caramba! isso é bom! faz logo tudo e manda-me os livros!

Followers