Fait divers de toda a ordem.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Diferentes perspectivas

O omnisciente:
Sempre pontual Pedro chegou e sentou-se ao balcão. Ultimamente tem andado irascível e sem paciência para nada. Impacientou-se consigo próprio por não ter conseguir decidir-se sobre o que beber e pediu o primeiro que viu na prateleira do bar à sua frente:
- “Um whisky, por favor.”
- “Novo ou velho?”
Mau! – Pensou, visivelmente azedo. - “Velho!”, disparou ao barista.
- “Com ou sem gelo?”
Porra! O gajo é chato! – Gritou mentalmente.
O barista sentiu a palpável má disposição do cliente à sua frente e apressou-se a servi-lo sem mais uma palavra, deixando o balde do gelo à disposição, para que se pudesse servir caso pretendesse.

Revolvia o dourado líquido dentro do copo, à espera de vontade de o beber, quando chegou o afogueado Tiago e o cumprimentou com uma pancada nas costas.
-“Pedro! Boa noite, pá!”. – disse, sem sequer considerar que estava atrasado ao copo a que ele próprio convidara o amigo.
-“Então pá! És sempre o mesmo! Até que enfim! Já estava a criar raízes!” – Pedro já estava habituado aos atrasos infindáveis do amigo. O que não significa que tenha aprendido a gostar desta postura do amigo. Admira-lhe muitas das suas qualidades, mas esta não é uma daquelas situações que primeiro se estranha e depois se entranha.

Com o bar quase vazio não havia dificuldade em sentarem-se os dois ao balcão e ficarem sossegados a conversar, sem mais ninguém reparar que ali estavam. Contudo, onde se encontra o activo amigo de Pedro, pela sua imagem, pela sua atitude e pela sua vida que é a de alguém sem tempo para nada e de quem faz mil e outras coisas, as salas inundam-se de uma atmosfera electrizantemente positiva e de repente para os poucos clientes a sala pareceu-lhes quente e alegre.

-“Que é que estás a beber?” – quis saber Tiago.
“Humm,” – Pedro não respondeu de imediato, hesitou ainda disperso entre a vontade de lhe gritar e o respeito que lhe tem - “whisky.”
Tiago sorriu e dirigindo-se ao barista, pediu o mesmo: -“Ok, um whisky para mim também. Do velhinho, daquele que tem aí guardado para os clientes especiais, com duas pedras de gelo.”
A cabeça de Tiago é uma profusão de ideias. Viajando, à velocidade da luz, do pedido da bebida, passa para as tarefas que estavam para fazer ainda naquela noite na associação, chegando à recordação de que estava em falta com a namorada. – “Sabes que horas são?” – perguntou, estava preocupado com o desgosto que há pouco tempo lhe provocara.
-“Quase oito!” – respondeu Pedro – “Estava a pensar nisso quando chegaste… vou chegar atrasado a casa por tua causa e a mulherzinha vai fazer uma cena daquelas! Não que já não seja hábito.” – Esta sim é a razão da sua impacientação nos últimos tempos.
Tiago, ligeiro, apresentou a sua receita para o sucesso: – “Eh pá… à minha namorada deixo-a barafustar tudo o que quiser, vou dizendo uns sims e uns nãos pelo meio de acordo com o que ela vai pregando, e no final digo-lhe que tem toda a razão. Fica que nem um bebé assim que se lhe dá a chupeta.” – diz com toda certeza, mas assim que a recita, recorda-se que esta deixou de ser a solução infalível no relacionamento.

O Pedro:
Este gajo é sempre o mesmo! Não liga nenhuma às horas e chega e senta-se como se nada fosse. Reconheço que o gajo se mata a trabalhar na empresa e fora dela, sempre de um lado para o outro, sem nunca deixar cair a bola. E até é bom amigo, mas o que é demais cheira mal.
-“Pedro! Boa noite, pá!”.
-“Então pá! És sempre o mesmo! – resmunguei-lhe - “Até que enfim! Já estava a criar raízes!” – tentei aligeirar a minha irritação. Não me consigo chatear com ele… não quando chega com esta energia.
-“Que é que estás a beber?” – perguntou, como se não me tivesse ouvido.
-“Humm,” – hesitei, este gajo deixa-me sempre desconcertado – “whisky.”
-“Ok, um whisky para mim também. Do velhinho, daquele que tem aí guardado para os clientes especiais, com duas pedras de gelo.” – pediu ao barista. Tanta minúcia… só não se dá ao trabalho é de chegar a horas.
-“Sabes que horas são?” – perguntou. Olhei-lhe nos olhos e um brilho denunciou-o… lembrou-se da namorada. É cá um pinga amores!
-“Quase oito! Estava a pensar nisso quando chegaste… vou chegar atrasado a casa por tua causa e a mulherzinha vai fazer uma cena daquelas! Não que já não seja hábito.”
-“Eh pá… à minha namorada deixo-a barafustar tudo o que quiser, vou dizendo uns sims e uns nãos pelo meio de acordo com o que ela vai pregando, e no final digo-lhe que tem toda a razão. Fica que nem um bebé assim que se lhe dá a chupeta.” – Disse como se de um truque para adormecer recém nascidos se tratasse. Deixa-a a chuchar? Como é que ela lhe atura tanta coisa?
Bem, pensando bem… antes de eu casar era sempre velejar à bolina.
Mas afinal para que é que o gajo me chamou aqui a esta hora?

O Tiago:
Finalmente um sítio para estacionar. Devia ter combinado noutro sítio. Pensei que a esta hora já fosse mais fácil. Não vejo a hora de estar bom tempo para poder trazer a minha CBR!
Ah ele já cá está!
-“Pedro! Boa noite, pá!”.
Onde foram todos? Isto costumava estar sempre cheio. E as luzes? O que é que se passa? Contenção de despesas? Bem, não importa.
-“Que é que estás a beber?”
-“Humm, whisky.”
-“Ok, um whisky para mim também. Do velhinho, daquele que tem aí guardado para os clientes especiais, com duas pedras de gelo.” - As coisas boas da vida devem ser bem apreciadas. Depois disto ainda tenho de passar na associação para confirmar quem aparece para ajudar na organização da prova de atletismo no Domingo, confirmar as inscrições dos concorrente, os patrocínios, ver se está tudo a postos… ah e ligar à Paula.
Por falar em Paula… -“Sabes que horas são?”
-“Quase oito! Estava a pensar nisso quando chegaste… vou chegar atrasado a casa por tua causa e a mulherzinha vai fazer uma cena daquelas! Não que já não seja hábito.”
Por isso é que isto está às moscas e com tudo apagado. Está tudo a ir ou já em casa.
-“Eh pá… à minha namorada deixo-a barafustar tudo o que quiser, vou dizendo uns sims e uns nãos pelo meio de acordo com o que ela vai pregando, e no final digo-lhe que tem toda a razão. Fica que nem um bebé assim que se lhe dá a chupeta.”
Mas tenho que lhe ligar ainda hoje. E tenho de arranjar um fim-de-semana só para ela, para emendar a bronca de a ter deixado à espera em casa quando ela fez anos para irmos ver o gloriooooooso à catedral. Senão acaba-se a paciência e ainda a perco para o baboso quatro-olhos lá do escritório dela. Pá… era a final da Taça UEFA.
Mas quando?
A velha jarreta:
Aqueles ali ao balcão parecem ser bons amigos. Da forma como o primeiro reagiu como se já estivesse habituado àquela pancada nas costas quando o outro chegou, só podem ser bons amigos. Devem ter andado juntos na escola. Irmãos não podem ser… são tão diferentes fisicamente… será que…
-“Oh chefe, desbloqueia-me a máquina para tirar cigarros?”
Credo! Já não basta o hábito horrível de fumar, ainda tem de vir gritar-me aos ouvidos! Há muita gente sem nível.
Não tem nada que ver com aqueles dois, não senhora. Boas roupas, boa postura.
À primeira vista, mas vendo melhor o primeiro até que curva um pouco as costas e está sempre a bater o pé, deve estar nervoso com alguma coisa. Vê-se que está agastado, deve ser do trabalho, estes empregos de hoje em dia - uma pessoa além de ter de fazer o trabalho de cinco ou seis, ainda o tem de fazer com aquelas máquinas infernais – matam os jovens aos poucos. Qualquer dia enfiam-lhes logo os computadores na cabeça à nascença.
E o segundo parece ter passado por um furacão, o fato está todo amarrotado, aquele nó da gravata já teve melhores dias – deve estar feito desde que a comprou e a vendedora lho fez, vê-se que lhe falta uma mão feminina em casa -, entra por aí à bruta, cumprimenta o amigo com aquele pancadão nas costas, espalha a pasta e o sobretudo pelo balcão.
Realmente há mesmo muita gente sem nível.
[O meu exercício 2, Diferentes perspectivas - Ponto de Vista do Curso de Escrita Criativa:
SENA-LINO, Pedro - Curso de Escrita Criativa I, Criative-se: usar em caso de escrita - Porto Editora, 2008]

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